Após uma década de insucessos, a seleção soviética apresenta-se no Mundial de Futebol de Espanha em 1982 com esperanças renovadas e com uma forma de liderança algo peculiar. Os líderes do desporto soviético tinham decidido manter uma espécie de equipa técnica colegial com Konstantin Beskov, Valery Lobanovsky e Nodar Akhalkatsi no papel de selecionador, assumindo cada um deles uma tarefa diferente na preparação da equipa, mas integrando todos eles uma “criatura de três cabeças” que reunia em si todos os pressupostos para um perfeito desastre.
O Regresso de Konstantin Beskov
A década de 1970 foi um verdadeiro pesadelo para o futebol soviético no que respeita a presenças em campeonatos do mundo. Depois das exibições bem interessantes no Mundial de Futebol do México em 1970, a URSS falhou, ainda que por motivos diferentes, a presença no Mundial de 1974 na Alemanha e no de 1978 na Argentina. A batalha política com a FIFA em 1974 e o futebol de má qualidade em 1978 arredaram o combinado soviético do grande palco internacional que são os campeonatos do mundo de futebol. Desagradadas com a situação do futebol sénior do país, as autoridades soviéticas decidiram voltar a recrutar Konstantin Beskov para liderar a seleção da URSS. Depois de ter estado ao comando da formação soviética em 1963 e em 1974, Beskov, que por essa altura começava a implementar com sucesso uma espécie de estilo “Tiki-Taka” no Spartak Moscovo, parecia ser a escolha certa para voltar a colocar a URSS no trilho das vitórias. O experiente treinador da formação moscovita assume o comando da seleção em 1979, rendendo Nikita Simonyan, quando ainda decorria a fase de apuramento para o Euro 80, mas o combinado soviético já não podia ser salvo e terminou o grupo de qualificação em último lugar, atrás da Grécia, Hungria e Finlândia. O efeito Beskov na equipa nacional não demorou a fazer efeito e logo em 1980, a URSS derrota a Hungria, a Suécia e o Brasil. Nesse mesmo ano, tinha início a fase de apuramento para o Mundial de 1982 em Espanha e os responsáveis pelo futebol soviético decidiram não cometer os erros do passado recente, compilando o calendário de jogos de apuramento em blocos de dois e quatro jogos cada, de preferência durante o verão e o outono, quando os outros países ainda preparavam a nova temporada e os jogadores soviéticos já estavam no seu melhor momento de forma. Neste novo ciclo de jogos, a URSS realizou os dois encontros de apuramento com a Islândia em 1980 e os seis restantes encontros entre setembro e novembro de 1981. O plano parecia ter tudo para dar certo, mas começaram a surgir alguns problemas. Durante onze meses e meio, a seleção soviética realizou apenas um encontro oficial e tiveram lugar mais sete convocatórias para jogos amigáveis o que fez com que, em determina altura, os jogadores do Dynamo Kiev e do Dynamo Tbilisi começassem a pedir dispensa dessas convocatórias pelos mais diversos motivos.
A “criatura de três cabeças”
Em setembro de 1981, Beskov sentiu que estava a perder o controlo da equipa e temendo falhar o apuramento para o Mundial de 1982, colocou em cima da mesa uma proposta muito pouco convencional: chamar os treinadores do Dynamo Kiev e do Dynamo Tbilisi, mais concretamente, Valery Lobanovsky e Nodar Akhalkatsi, para integrarem junto com ele uma espécie de equipa técnica colegial durante o que restava da fase de apuramento para o campeonato do mundo, controlando assim, ao mesmo tempo, os seus próprios jogadores. O efeito inicial desta nova abordagem de liderança foi um sucesso e os soviéticos derrotaram de uma assentada a Turquia, a Checoslováquia e o País de Gales, demonstrando um estilo de jogo bastante apelativo e muito consistente. O combinado soviético terminou a fase de apuramento com 20 golos marcados e apenas dois sofridos, e a imprensa internacional começou a olhar para URSS como um sério candidato a qualquer coisa significativa no Mundial de Espanha. Dessa equipa faziam parte jogadores de enorme qualidade como eram os casos de Oleg Blokhin, Ramaz Shengelia, Vitaly Daraselia, Yuri Gavrilov, Leonid Buryak, David Kipiani, Vladimir Bessonov, Fyodor Cherenkov, Khoren Oganesyan, Aleksandr Chivadze, Sergey Baltacha, Anatoly Demyanenko, Vagiz Khidiyatullin e o não menos importante, Rinat Dasaev. Do lado da equipa técnica, cada treinador desempenhava o seu papel: Beskov era o responsável pela estratégia e pelo padrão de jogo, Lobanovsky tinha a seu cargo a parte física e o treino tático, e Akhalkatsi tomava conta do trabalho psicológico e assegurava a manutenção de um clima harmonioso entre os jogadores.
Depois de ter assegurado o bilhete para Espanha, Beskov já não tencionava contar com o triunvirato durante o Mundial de Futebol, mas o governo soviético não tinha a mesma ideia e decidiu-se pela manutenção do trio que tinha trazido de volta a esperança ao futebol do país. Num ápice, aquela famosa equipa técnica colegial passou a ser uma criatura desgovernada de três cabeças. Tudo o que até então tinha corrido lindamente, passou a correr mal e rapidamente a equipa ficou dividida em dois grupos: um deles fiel ao “jogo bonito” de Beskov e outro fiel ao pragmatismo de Lobanovsky. Akhalkatsi, um homem modesto e extremamente educado, achou por bem não se envolver neste jogo de poder. Para além dos problemas palpáveis na equipa técnica, a ausência forçada ou por opção de alguns dos melhores jogadores soviéticos da altura, abriu mais uma brecha quase irreparável naquela equipa que parecia reunir todos os ingredientes para o sucesso. Buryak estava a braços com uma lesão persistente e Bessonov tinha estado seis meses de fora devido a uma lesão muscular, mas seguem para o mundial. Khidiyatullin ficou de fora com uma perna partida, enquanto Cherenkov e Kipiani acabam por não integrar o grupo devido a decisão técnica, ainda que o georgiano também viesse de uma lesão grave.
Estádio Ramón Sánchez Pizjuán, 14 de junho de 1982
Apesar de todos os contratempos e conflitos internos, a seleção soviética teve um desempenho bastante convincente do dia 14 de junho em Sevilha diante do poderoso Brasil de Telê Santana e pode até dizer-se que merecia um resultado bem diferente daquele que se verificou no final do encontro. A URSS esteve em vantagem até ao último quarto de hora do jogo, altura em que Sócrates desfez os sonhos da formação soviética com um golo do outro mundo de fora da área. Perto do final do encontro, Éder garantiu a vitória brasileira com mais um golaço de levantar o estádio. O lendário médio soviético Andrey Bal tinha aberto a contagem para a URSS na primeira parte, contando em grande medida com a colaboração do guarda-redes Waldir Peres. No final, os soviéticos, com alguma razão, queixaram-se de duas grandes penalidades por assinalar, mas para a história fica apenas uma boa exibição e uma derrota pela margem mínima com uma das melhores seleções mundiais no dia em que até a televisão espanhola enquanto filmava Valery Lobanovsky, colocava o nome de Konstantin Beskov nos ecrãs.
Depois da derrota sobre o Brasil seguiu-se uma vitória sobre a Nova Zelândia e um empate com a Escócia na primeira fase de grupos, e uma vitória sobre a Bélgica e um empate a zero com a Polónia na segunda fase grupos, empate esse que viria a ditar o afastamento da seleção soviética do Mundial de Futebol de 1982. Esse encontro final diante dos polacos deixou a claro todas as diferenças entre Beskov e Lobanovsky, sendo que a “teimosia tática” do treinador do Dynamo Kiev acabaria por deitar tudo a perder. A insistência numa defesa com cinco homens e uma atenção redobrada a Zbigniew Boniek fez com que a bola raramente chegasse a Blokhin e Shengelia, e os “cérebros” da equipa, Gavrilov e Oganesian, passassem ao lado do jogo.
De volta a Moscovo, já com a hidra sem vida, Konstantin Beskov é afastado do comando da seleção soviética por conta da prestação insatisfatória, estendendo a passadeira a Valery Lobanovsky, que acabaria também por ter uma segunda experiência nada bem-sucedida ao comando do combinado soviético.
A hidra soviética não precisou que Hércules a decapitasse num dos seus trabalhos, porque ela própria já havia autoinfligido golpes fatais, motivada por egos maiores do que o mundo e travos de arrogância que acabariam por a transformar num Narciso, que, apaixonado pelo seu próprio reflexo, deitaria por água abaixo uma geração promissora de futebolistas soviéticos.
excelente texto.
Apenas algumas notas: A URSS Realmente foi prejudicada pela arbitragem no jogo de estréia contra o Brasil. Eu sou Brasileiro mas aquele árbitro espanhol Lamo Castilho estava de má fé.
Um dos pênaltis foi logo no início do jogo e foi claríssimo em cima do Shengelia e teria sido difícil mesmo aquela seleção Brasileira brilhante ter vencido se o 1° tempo terminasse 2-0 para os soviéticos.
Sobre o comando técnico eu nunca entendi bem não ter tido o Cherenkov uma chance.
Ele jogou e inclusive fez gol em amistoso no Maracanã na vitória soviética por 2-1 em pleno jogo comemorativo de aniversário de 30 anos do templo do futebol Brasileiro.
Provavelmente foi pela influência do Lobanovsky e seu jogo mais pragmático. Tanto tem fundamento essas suspeitas que ele não o levou para as duas Copas Seguintes, em que estava a frente do comando soviético.
E o Mundo perdeu a chance de conhecer um grande craque de futebol que após encerrar sua carreira morreu ainda jovem de um ataque no coração provavelmente devido a tristeza de ter sido preterido de 3 mundiais e uma Euro.
Uma outra sugestão de texto Joel seria falares sobre o que aconteceu às vésperas da Copa Seguinte, em 1986, em que também houve um problema com o técnico soviético que classificou a seleção para o México mas foi removido de última hora antes do Mundial.
Essa história até hoje não foi muito bem esclarecida...
Abraços
@Fabio Macedo