Sichinava, a camisola de Pelé e o dinheiro de Eusébio
Poucos jogadores tiveram o privilégio de privar com Pelé e Eusébio ao longo da sua carreira, principalmente se tivermos em conta uma carreira que terminou aos 28 anos. Giorgi Sichinava é um perfeito desconhecido no ocidente, mas a sua carreira, apesar de curta e conturbada, ficou marcada por episódios verdadeiramente impressionantes.
A 7 de julho de 1965, o Brasil de Pelé e companhia está de visita a Moscovo para disputar um encontro de carácter amigável com a URSS no Estádio Lenin, atualmente conhecido por Estádio Luzhniki. Os brasileiros foram recebidos com grande carinho e entusiasmo e distribuíram ramos de flores pelos adeptos antes do início do encontro. A partida decorreu em clima quase festivo e a superioridade do Brasil foi por demais evidente. Pelé estava em grande forma e, na formação soviética, ninguém queria assumir a responsabilidade de o marcar. Albert Shesternyov estava com febre e recusou jogar, Murtaz Khurtsilava queixou-se de uma lesão e de dores de estômago, forçando o selecionador Nikolay Morozov a abordar Giorgi Sichinava, solicitando-lhe que assumisse a responsabilidade. O corajoso médio do Dynamo Tbilisi não se fez rogado e tomou para si a difícil tarefa de marcar o lendário craque brasileiro. Sichinava é um verdadeiro contador de histórias nos dias que correm e estaria, segundo o próprio, a contar com a ajuda de Valery Voronin para a marcação a Pelé, mas tal não correu conforme esperado e o astro brasileiro acabaria por marcar dois dos três golos com que o Brasil bateu a URSS. Contudo, o momento mais marcante do jogo estava ainda para acontecer para o antigo internacional soviético. Depois do final do encontro, com um cobertor pelas costas, Pelé chamou Sichinava pelo nome, deixando todos boquiabertos. Aparentemente, o craque brasileiro conhecia outros jogadores soviéticos para além de Lev Yashin. Sichinava, algo surpreso, aproximou-se de Pelé e este deu-lhe a sua camisola. De acordo com o médio soviético, alguém que estava próximo terá perguntado: “Porquê o Sichinava?”, ao que Pelé respondeu: “Porque ele é negro como eu”. Na verdade, Sichinava não era negro, mas, como o próprio gosta de dizer, estava bastante bronzeado. Esse tal bronzeado já lhe tinha valido o apelido de “Negro” no Dynamo Tbilisi, onde Sichinava afirma que se destacava dos restantes jogadores por conta do seu bronzeado.
Para além do contacto com Pelé, que Sichinava recorda com grande carinho e quem considera um verdadeiro Deus do futebol, o antigo médio soviético teve também a oportunidade de privar com Eusébio durante o Mundial de 1966 na Inglaterra. De acordo com Sichinava, que tirou uma foto lendária ao lado do Pantera Negra, Eusébio era bastante amigo de Valery Voronin e terá deixado uma quantia de dinheiro bem simpática na receção do hotel onde os soviéticos estavam hospedados para que Voronin e o seu grupo de amigos, onde Sichinava estava incluído, pudessem desfrutar dos luxos do restaurante do hotel. Os jogadores soviéticos tinham viajado acompanhados por uma comitiva muito bem composta do KGB e precisavam de recorrer a estes “malabarismos” para fintar o apertado controlo da polícia política. Segundo o próprio, Giorgi Sichinava terá mesmo jantado à mesa com Eusébio e Alan Ball.
Apesar dos oito jogos ao serviço do combinado soviético entre 1964 e 1966 e dos quase 170 jogos disputados pelo Dynamo Tbilisi, Giorgi Sichinava foi obrigado a retirar-se do futebol aos 28 anos. Os constantes arrufos com os adversários (em 1965 deu um soco no estômago ao craque jugoslavo Dragoslav Shekularac num encontro amigável entre a URSS e a Jugoslávia) e também com os árbitros valeram-lhe uma intimação do Ministro do Interior da República de Geórgia, Eduard Shevardnadze. Giorgi Sichinava foi detido durante três semanas como castigo por estar a dar um mau exemplo para a sociedade e para o futebol, mas conseguiu escapar da esquadra onde se encontrava encarcerado alguns dias depois. Aquando dessa visita ao gabinete de Shevardnadze depois de uma agressão a um árbitro, Sichinava proferiu a seguinte a frase após a reprimenda do famoso político georgiano: “Obrigado pelas suas simpáticas palavras, Eduard Amvrosievich, mas peço-lhe, meta-se na sua vida e apanhe os criminosos, que eu vou jogar futebol”. Os problemas com Shevardnadze estavam só a começar e meses depois foi novamente detido sob a acusação de violação de uma mulher que, por sinal, era sua amiga há muitos anos. Segundo Giorgi Sichinava, a mulher em causa foi obrigada a testemunhar contra ele e, apesar de em tribunal ela não ter corroborado a história da acusação e de ter dito que o médio georgiano nada tinha feito, o juiz não levou isso em conta e condenou-o a quatro anos de prisão. Giorgi Sichinava passou pouco mais de um ano na cadeia e foi libertado em 1971 por bom comportamento. Voltou ao futebol ao serviço do Metallurg Rustavi e recebeu convites de equipas do principal escalão do futebol soviético, mas o lamaçal político impediu-o de voltar a jogar ao mais algo nível.
Apesar de continuar a afirmar que não guarda rancor a ninguém, nem mesmo a Shevardnadze, de quem recusou receber uma medalha pessoalmente já numa Geórgia independente, Giorgi Sichinava decidiu, por volta de 1973, terminar a carreira de futebolista aos 28 anos.