O número 10 de “Dobro”
Número 10 nas costas, camisola vermelha, calções brancos, meias vermelhas puxadas quase até ao joelho, bola da Adidas debaixo do braço. Igor Ivanovich avança para a área com uma calma digna de um herói de Lermontov num romance russo, pousa a bola na marca de penalti, vira costas à mesma e a um famoso guarda-redes brasileiro que se exercitava na linha golo e caminha descontraidamente até à entrada da área como se aquele momento não merecesse todo o empenho e dedicação. Segundos depois, arranca para a bola, mantendo a frieza e a aparente descontração com que havia caminhado até à entrada da área e dispara com toda a confiança para o fundo das redes do incontornável Cláudio Taffarel.
Igor Ivanovich Dobrovolsky foi um jogador que marcou a minha infância. Vi aquele famoso golo ao Brasil de outubro de 1988 vezes sem conta numa velha cassete VHS e repetia o seu nome de forma recorrente para não me enganar a pronunciar. Aos sete ou oito anos não era um nome fácil de pronunciar, mas a persistência tem, por vezes, bons resultados. Dobrovolsky é um caso singular em vários aspetos. Nasceu em Markovka, na região de Odessa, durante o período soviético e tem três nacionalidades diferentes: soviético, russo e moldavo. O “Dobro” ou “Dobrik”, como carinhosamente o tratavam durante os seus verdes anos, jogou também por três seleções diferentes: URSS, CEI e Rússia. Segundo o próprio, poderia até ter jogado por uma bem diferente, a Itália, uma vez que lhe propuseram tornar-se cidadão italiano logo a seguir ao Euro 92. O jogador afirma mesmo que foi a única seleção que o abordou formalmente, mas que, no fim de contas, optou por jogar pela Rússia porque era por lá que os seus amigos de infância iriam jogar também, defendendo que a escolha em nada se deveu a sentimentos patrióticos. Em 1988, durante os Jogos Olímpicos, “Dobro” tornou-se num dos poucos jogadores no mundo a marcar em cinco jogos consecutivos do torneio de futebol olímpico. Os seis golos apontados valeram-lhe o segundo lugar na lista de melhores marcadores do torneio, logo atrás do inevitável Romário de Souza. Em 1990, a serviço da combinado da URSS no Itália 90 voltou a marcar, desta vez diante dos Camarões na única vitória que os soviéticos somaram no torneio. Em 1992, para não ser diferente, voltou a marcar numa grande competição de seleções, apontando o único golo da CEI no Euro 92, mais uma vez da marca de grande penalidade.
A nível de clubes, Dobrovolsky também foi um colecionador de marcas interessantes. Venceu a Taça dos Clubes Campeões Europeus ao serviço do Olympique Marseille 1993, apesar de não ter sido aposta do treinador Raymond Goethals. “Dobrik” chegou a França pela mão de Bernard Tapie e o treinador belga desde cedo deixou bem claro que o outrora craque soviético não fazia parte dos seus planos. Para além desta experiência algo bizarra em França, Igor Ivanovich correu uma boa parte da Europa, jogando em Espanha, em Itália, na Suíça e na Alemanha, sem no entanto conseguir vencer mais nenhum troféu assinalável.
Quando finalmente pendurou o famoso número 10 com o qual havia vencido o prémio de melhor jogador da URSS em 1990, “Dobro” dedicou-se à carreira de treinador, mas, com exceção de uma curta passagem pela Ilha Sacalina, esta fez-se exclusivamente na Moldávia e contou até com várias aparições como selecionador nacional. Os cigarros e a bebida “substituíram” aquela calma e frieza com que passeara em 1988 em Seoul na final do torneio olímpico de futebol diante do Brasil e trouxeram ao velho “Dobrik” vários problemas de saúde, um deles quase fatal, no coração, que por pouco não lhe pôs fim à vida. A excelente visão que tinha dentro de campo talvez não o tenha acompanhado na vida real fora dele, mas nada disso é suficiente para ofuscar o talento de um dos melhores futebolistas soviéticos de sempre, nem para apagar a imagem bonita que deixou na minha mente durante a infância.